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sexta-feira, 5 de abril de 2013

Lições de um retorno

Paul Krugman – 02/04/2013


O movimento do conservadorismo moderno, que transformou o Partido Republicano da moderada agremiação de Dwight Eisenhower na radical organização de direita que vemos hoje, surgiu, em grande parte, na Califórnia. O "Estado Dourado", ainda mais do que o sul dos Estados Unidos, criou o atual conservadorismo religioso. A Califórnia elegeu Ronald Reagan governador e foi onde a revolta fiscal de 1970 teve início. Mas isso foi naquela época. Nas décadas que se seguiram desde então, o estado da Califórnia tem ficado cada vez mais liberal, graças, em grande parte, à crescente parcela de seu eleitorado, constituída por não-brancos.

Como resultado – reinado do governador Arnold Schwarzenegger à parte –, a Califórnia tem se mostrado maciçamente democrata desde a década de 1990. E, desde que o equilíbrio político mudou, os conservadores declararam que o estado estava condenado. As especificidades deles continuam mudando, mas a moral é sempre a mesma: os liberais benfeitores estão destruindo a Califórnia.

Mais ou menos uma década atrás, o estado foi supostamente condenado por todos os seus ambientalistas. Veja você: à época, os "eco-chatos" provocaram a paralisação das usinas geradoras de energia elétrica, e o resultado foram apagões incapacitantes e a disparada dos preços da eletricidade. "O estado modelo do país", regozijou-se o jornal The Wall Street Journal, "está parecido com uma infeliz república de bananas". Mas uma coisa engraçada aconteceu durante a rota rumo ao colapso: descobriu-se que o principal culpado da crise da energia elétrica foi a desregulamentação, que abriu as portas para uma implacável manipulação do mercado. Quando a manipulação do mercado acabou, também acabaram os apagões.

Alguns anos mais tarde, os conservadores implacáveis descobriram outra frente de ataque. Dessa vez, eles diziam que os gastos demasiados dos liberais e os altos salários dos funcionários públicos estavam provocando o colapso. E, nos últimos anos, o estado da Califórnia tem, efetivamente, enfrentado uma severa crise fiscal. Quando a bolha norte-americana do setor imobiliário estourou, a Califórnia foi atingida de forma especialmente dura – e os efeitos combinados dessa queda nos preços dos imóveis e da crise econômica levaram a uma queda drástica da receita estadual. Mais uma vez, foram ouvidos pronunciamentos de contentamento com a desgraça iminente: a Califórnia, conforme diziam todos os especialistas, é a Grécia dos Estados Unidos.

Mais uma vez, no entanto, os relatos sobre a morte do estado se mostraram prematuros. O desemprego na Califórnia continua alto, mas está recuando – e prevê-se um superávit orçamentário para o estado. Esse superávit se deve, em parte, à implosão do Partido Republicano estadual, que finalmente deu aos democratas uma vantagem política bastante grande para que sejam aprovados alguns reajustes de impostos que se fazem desesperadamente necessários. Longe de estar administrando uma crise ao estilo grego, o governador Jerry Brown está proclamando seu retorno. Desnecessário dizer que os suspeitos de costume ainda estão prevendo mais desgraça – desta vez, devido aos próprios aumentos de impostos que vieram para solucionar o déficit orçamentário, que, segundo eles, vai fazer com que milionários e empresas deixem o estado. Bem, talvez – mas estudos sérios detectaram muito poucas evidências de que os aumentos de impostos levam uma grande quantidade de pessoas abastadas a deixar o estado ou que os impostos estaduais têm impacto significativo sobre o crescimento.

Então, o que podemos aprender com essa história de desgraça adiada? Eu não estou sugerindo que tudo na Califórnia esteja ótimo. O desemprego – especialmente o desemprego de longo prazo – continua muito alto. O crescimento econômico de longo prazo da Califórnia também desacelerou, principalmente porque a oferta limitada de terrenos disponíveis para a construção de nova edificações no estado significa uma alta nos preços dos imóveis residenciais, o que trará a era de rápido crescimento populacional ao fim. (Você sabia que região metropolitana de Los Angeles tem uma densidade populacional maior do que a área metropolitana de Nova York?) Por último, mas não menos importante, décadas de paralisia política têm degradado o sistema de ensino público do estado, que já foi maravilhoso. Portanto, há muitos problemas na Califórnia. A questão, no entanto, é que esses problemas não têm nada a ver com a história da morte Califórnia – provocada pelo liberalismo – que os críticos insistem em vender. A Califórnia não é um estado no qual os liberais se multiplicaram sem nenhum controle. A Califórnia é um estado onde a maioria liberal foi efetivamente prejudicada por uma minoria fanática e conservadora que, graças à legislação da supermaioria, tem sido capaz de obstruir a formulação de políticas eficazes.

E é aí que as coisas ficam realmente interessantes – pois a era da paralisia governamental parece estar chegando ao fim. Ao longo dos anos, os republicanos da Califórnia se inclinaram à direita à medida que o estado se inclinava à esquerda e, mesmo assim, os republicanos conseguiram manter sua relevância política graças a seu poder de obstrução. Mas agora a massa crítica do Partido Republicano californiano recuou para um nível inferior ao mínimo necessário e perdeu até mesmo seu poder de obstrução – o que deixou o governador Brown livre para aprovar uma agenda de aumentos de impostos e de gastos em infraestrutura que soa extremamente parecida com o tipo de coisa que a Califórnia costumava fazer antes da ascensão da direita radical.

E, se essa agenda for bem sucedida, ela terá implicações nacionais. Afinal de contas, a história política da Califórnia – que viu a radicalização do Partido Republicano fazer a agremiação se distanciar cada vez mais de um eleitorado cada dia mais diversificado e socialmente liberal e, por fim, provocou sua marginalização – está, sem dúvida, se desenvolvendo, com um certo atraso, no cenário nacional também.

Será que a Califórnia ainda é o lugar onde o futuro acontece primeiro? Fique atento às próximas notícias.

Professor de Princeton e colunista do New York Times desde 1999, Krugman venceu o prêmio Nobel de economia em 2008
Tradutor: Cláudia Gonçalves

terça-feira, 2 de abril de 2013

Os serviçais do Brasil

Por Gabril Bonis, Rodrigo Martins e Willian Vieira*
Na Carta Capital em 02/04/2013


Aos 12 anos, Cleusa Maria de Jesus deixou os oito irmãos na casinha apertada na periferia de Salvador para ser entregue pela mãe a uma família com a promessa de ser tratada como filha e ir à escola pela primeira vez. Em troca, faria o trabalho doméstico. A realidade era outra. Por sete anos a menina teve de servir aos patrões 24 horas por dia, sem remuneração, privacidade ou educação. “Ganhava os restos de comida e roupas velhas. Era semiescrava”, diz ela. Aos 20 anos, trocou de trabalho e passou a ganhar um salário (abaixo do mínimo), mas ainda vivia na casa da patroa, sem folga. Só aos 34 anos tirou férias, após descobrir o sindicato das domésticas baianas, do qual hoje é presidente. Uma história perversamente atual no Brasil, tanto nos rincões desprovidos do olhar do Estado quanto nas metrópoles, igualmente vítimas da cultura arcaica que normaliza resquícios escravistas e faz das domésticas as mucamas de hoje.

“No interior do País, o que mais tem é menina de 12 anos trabalhando por um prato de comida”, diz Cleusa de Jesus, que por oito anos trabalhou de graça, sem folga, para uma família em Salvador. Só tirou folga aos 34 anos, após descobrir o sindicato que hoje preside. Foto: Edson Ruiz “No interior deste País, o que mais se vê é menina de 12 anos trabalhando por um prato de comida”, diz Cleusa, ao falar com a segurança de quem viveu todos os meandros do emprego doméstico no Brasil. Seu relato contraria o delírio de prosperidade a povoar as páginas de jornais, nas quais as domésticas, com carro, casa e dinheiro para gastar, viveriam em um eldorado. Muitas delas integram a chamada “nova classe média”: basta ganhar pouco mais de mil reais para ter um papel no atualíssimo mito econômico nacional, ainda que sigam submetidas ao pior do servilismo nativo. “Tapas, empurrões, braços e pernas quebrados são denúncias comuns”, diz – situação advinda do anacronismo de uma doméstica dormir na casa do patrão. Quando o sindicato conseguiu do governo um conjunto habitacional para 80 delas, houve 500 inscrições. “É o sonho de toda doméstica que passa dia e noite a serviço do patrão ter liberdade”, diz. “Aqui, numa mansão de três pisos onde deviam trabalhar cinco empregadas, tem uma. Não há nem controle de horas trabalhadas.”

É fácil entender por quê. O Brasil é o país com o maior número de empregados domésticos no mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Eram ao menos 7,2 milhões em 2010, enquanto, em 1995, havia 5,1 milhões, mais de 95% deles mulheres. No mundo, o número de empregadas também cresceu, mas nada se compara ao boom de 41% no Brasil. Hoje, de cada seis mulheres que trabalham no País, uma é doméstica. A expansão foi seguida pela alta de 47% nos salários, impacto causado pelo aumento do mínimo nos anos Lula.

Tais números não justificam, porém, a euforia do discurso midiático. Diante da demanda cada vez mais voraz de quem galgou alguns degraus na escala social, a remuneração delas tem aumentado, assim como o seu poder de consumo. “Mas daí a dizer que as domésticas estão por cima da carne-seca é uma fantasia”, afirma Hildete Araújo. Pesquisadora das peculiaridades do trabalho doméstico no Brasil há mais de 20 anos, a economista e professora da UFF critica o ufanismo em torno da ascensão econômica das empregadas, retratadas nas novelas globais como prósperas, poderosas e capazes de virar empresárias famosas da noite para o dia. Uma dose de surrealismo para apaziguar conflitos de classe e encobrir uma antiga dívida da Nação com seus serviçais desde os tempos da abolição, quando muitos ex-escravos seguiram trabalhando de graça em troca de abrigo e comida. Eram as mucamas, cozinheiras e babás que criavam as elites da nação.

“Com o tempo, muitos desses trabalhadores domésticos se tornaram agregados, sendo tratados, por vezes melifluamente, ora como serviçais, ora como familiares de segunda categoria”, afirmou o pesquisador Cássio Cassagrande, procurador do Ministério Público do Trabalho. Quando a CLT entrou em vigor, em 1943, excluiu os domésticos. A dívida nunca foi corrigida. Em dezembro, a Câmara aprovou a proposta de emenda à Constituição que assegura igualdade de direitos aos domésticos, com jornada de 44 horas, pagamento de hora extra, adicional noturno, FGTS e seguro-desemprego. O projeto tramita no Senado. Mas restam incertezas. Por exemplo, como controlar as horas trabalhadas de quem dorme na casa do patrão?

Que o diga a baiana Joelma Regina Brito. Aos 12 anos, a menina de Jequié recebeu “abrigo” de uma abastada família da capital. Trabalhava de domingo a domingo. “Minha patroa dizia que não podia sair sozinha porque era nova”, conta. Aos 20 anos, migrou para São Paulo em busca de uma vida melhor e logo alcançou um salário três vezes maior. Mas a patroa exigia que dormisse no emprego e ficasse à disposição da família dia e noite. Joelma desistiu. Hoje trabalha registrada em um restaurante, tem o fim de semana livre e férias. O salário é menor. “Mas vale a pena. Hoje tenho horário para entrar e sair do trabalho.”

Não à toa, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que, do total de domésticas no País, 30% (cerca de 2 milhões de pessoas) são diaristas. Em 1999, eram 1,2 milhão delas. Gente como Maria Severina da Silva. Acostumada à roça, ela não se avexou em trabalhar como doméstica quando o marido morreu e ela ficou com uma filha para criar em São Benedito do Sul (PE). Deixou a menina com a mãe e passou a dormir no emprego. Ganhava 300 reais. “Quando cheguei em São Paulo, me ofereceram 900”, conta. Era mensalista. “E quase escrava.” O modo como era tratada, especialmente pelos filhos da patroa, enojou-a. “Nunca fui tão humilhada”, diz. Hoje ganha 1,8 mil reais mensais como diarista. Paga 200 reais para uma babá cuidar das filhas, pensa em comprar um carro, investe em um terreno. O marido é segurança particular e vivem bem. “Só volto a mensalista se estiver passando fome”, diz. “Queria mesmo é trabalhar chique, de salto. Terminar o estudo. Ter horário fixo.” Severina suspira. “Meu sonho é deixar de ser doméstica.”

A ambição de mudar de profissão é recorrente. Mas poucos conseguem. Hoje ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Delaíde Arantes começou a vida como doméstica no interior de Goiás, em troca de teto, comida e uns trocados para concluir o ensino médio. É o exemplo de quem rompeu o ciclo de exploração por meio dos estudos. Virou advogada trabalhista, defendeu pessoas que foram exploradas por patrões e, em 2011, foi indicada pela presidenta Dilma Rousseff ao TST. “O Congresso deve ao povo a aprovação da PEC das Domésticas”, afirma. Seria a chance de aumentar a formalização. As domésticas com registro são hoje menos de um terço do total, cenário que piora com a latitude: enquanto no Sul e no Sudeste 33% são formalizadas, no Nordeste a proporção é de 12,5%. “Nas áreas menos desenvolvidas, ainda há esse legado cultural mais forte de trabalho serviçal”, diz Natália Fontoura, do Ipea.

Nesse contexto se insere a figura brasileiríssima do valet. Em qualquer parte do mundo, valets são símbolo de luxo, serviço associado a hotéis cinco estrelas. No Brasil, são lugar-comum. Não há restaurante de classe média, mesmo rodízios baratos, que não ofereçam a mordomia. Em uma sexta-feira de chuva, há mais manobristas nas portas dos estabelecimentos do que garçons. Filas de pessoas aguardam reclamando pelo tão ansiado carro. Claro, o trânsito é infernal e o número de vagas insuficiente para a sempre crescente frota de veículos. Estacionar é um drama. Mas como explicar que essa espécie de motorista particular momentâneo disseminou-se tanto, a ponto de se tornar obrigatório o uso do “talão de valet”, padronizado e emitido pela prefeitura paulistana?

Na metrópole que sonha em se transformar em uma meca do luxo digna da alcunha, sua elite se defronta com a banalização do servilismo. Qualquer cidadão pode pagar de 10 a 20 reais para ter um servo estacionando sua carruagem. Ou 5 reais, no caso da churrascaria popular da zona sul onde o rodízio de carnes (coma à vontade) sai por 21,90 reais. É lá que o manobrista Danilo Ferreira trabalha, símbolo dessa democracia automotiva peculiar à brasileira. “Aqui vêm de Fusca a Porsche”, resume. “Quem é rico está habituado. O problema é o cara enjoado que acabou de comprar um carro melhorzinho. Dá vontade de dizer: ‘Amigo, já dirigi uma Ferrari’.” O colega maranhense sorri do deboche. Glaílton Almeida, de 31 anos, não tem carro: vai e volta do trabalho a pé. Pois mesmo na periferia, lá está o valet.

É no Rio de Janeiro, porém, que a dimensão da importância que os manobristas alcançaram no Brasil chega ao paroxismo. No Leblon, bairro com o metro quadrado mais caro do País, as obras do metrô provocaram uma extravagância social: manobristas e carregadores de sacolas à disposição de moradores 24 horas por dia. São babás automotivas. Um pequeno edifício na Rua Ataulfo de Paiva, por exemplo, teve sua garagem bloqueada pela construção. Um novo estacionamento foi disponibilizado a quatro quarteirões dali. E o prédio ganhou seis manobristas, pagos pela empreiteira, que levam e trazem os automóveis até a garagem e voltam a pé. Eles cuidam de cinco carros. “Oferecemos um serviço diferenciado”, orgulha-se Willian de Araújo. “Pra mim, é bom porque é um emprego bem tranquilo, diferente de outros valets. O caminho é tão curto que nem dá tempo de ligar o ar condicionado”, ironiza.

A situação é tão chocante que até o controverso ex-prefeito Anthony Garotinho se posicionou. “Isso é que é discriminação social”, afirmou em seu blog. “Para os abastados do Leblon, a casa-grande, (o governador Sérgio) Cabral banca mordomias para compensá-los pelo transtorno das obras. Já para a zona norte, a senzala, Cabral manda a PM intimidar os moradores para saírem às pressas de suas casas, a fim de que (o prefeito Eduardo) Paes possa tocar a obra da Transcarioca. As mordomias para uns, a chibata para outros.”

Mas não são apenas os valets de carro que colorem a paisagem do servilismo brasileiro. Há valets para cães (passeadores de cachorro) e para bebês (babás universitárias), além do “valet shopping”, ou “personal shopper”, que dá dicas de compra e bajula enquanto segura as sacolas do amo. O que está por trás dessa fixação por servidão 24 horas é a desigualdade. Só ela consegue alimentar o crescente mercado de empregados de luxo e produtores de mimos.

Para atender essa classe A, a psicóloga Taluana Adjunto decidiu abrir uma agência de “baby-sitters de luxo”, conceito que ela introduziu no País, diz. Por um ano ela recrutou candidatas com ensino superior, fluentes em um segundo idioma, e as treinou para se comportarem conforme o gosto do patrão, a incluir lições do que é ou não permitido comer. “Não é porque o dono da casa come camarão que ela vai comer. É a lógica de uma empresa.” A coerência empresarial para por aí. A maioria das clientes as registrava, mas não pagava o FGTS.

Entre as “dicas” às “monitoras infantis”, imperava a orientação de não exagerar no carinho. “Pedimos para não beijar as crianças no rosto, porque as clientes odiavam, sentiam nojo.” Uma cliente chegou a pedir uma babá branca “e com dentes brancos, como se estivesse escolhendo um cavalo”, conta. Ela diz não ter acatado as exigências, num país em que dois terços dos trabalhadores domésticos são pretos ou pardos, e 60% não concluíram sequer o ensino fundamental. Apesar de ganharem bem, as “monitoras”, qualificadas, escolarizadas, deixavam o emprego ao entrar em conflito com os chefes, o que ocorria com frequência. Pois elas em nada se parecem com as típicas domésticas no Brasil. “Elas eram bonitas, bilíngues, tinham passaporte e qualificação profissional, não eram uma doméstica qualquer”, conta Taluana. “As mães preferiam aquelas que aceitavam as ordens sem retrucar.”

A advogada mineira Valeria Rios não precisou de consultoria para expor em seu blog de madame, dias atrás, uma aula de como tratar empregados como escravos, ao versar sobre o trato com a babá de seu filho. O diário escracha o que muitos escondem: o quão pouco vale a figura humana do serviçal para a elite brasileira. Ela deu “dicas” de como ludibriar a babá na hora de comer (levando-a ao McDonalds antes e deixando-a cuidar do filho depois, no restaurante caro) e como, em uma ida ao caríssimo hotel Fasano, limitou seu acesso ao frigobar. Um trecho específico do libelo pela desigualdade, porém, virou febre no Facebook. “Na ida, no avião, perguntou se podia aceitar o lanche, se tinha banheiro, se ela podia escolher onde sentar, enfim, prefiro assim do que as folgadas que vão logo pedindo refrigerante.” Claro, nem todas as profissionais suportam tanto servilismo. “Pra mim chega”, disse Cristiane da Silva, na praça povoada por babás da futura elite carioca, no Leblon. “Trabalho 24 horas por dia, durmo na casa. Quando a gente está sempre ali por perto não tem descanso, seja dia ou seja noite”, diz a moça, devidamente uniformizada. Ela pediu demissão e cumpre aviso prévio, aliviada.

O rol de profissões aparentemente absurdas, ligadas ao servilismo exigido pelos ricos, encontra eco nos “personal shoppers”, compradores de luxo que adquirem desde compras de supermercado até roupas de grife para o cliente. “Os contratantes não têm tempo para essas tarefas”, explica Silvana Bianchini, consultora de imagem e diretora da Dresscode International, que fornece o serviço. Alguns clientes só descobrem quais roupas foram compradas para eles quando abrem as embalagens. Pela exclusividade pagam 300 reais a hora.

E o que dizer dos “passeadores de cachorro”, jovens universitários que se apinham numa tarde de chuva no Parque do Ibirapuera, na parte rica de São Paulo, para exercitar os cães de raça das madames? “O animal passeia, brinca e depois damos uma limpada nas patas e barriga, porque a maioria fica dentro de casas e apartamentos e pode sujar os tapetes”, conta Rauní Schimpl, estudante de biologia que passeia com sete cães, duas horas, todo dia. A 15 minutos dali, em uma creche canina com piscina, gramado e hospedagem, os cães recebem o cuidado de babás. E refletem a necessidade de mimos dos donos. “Alguns querem que os cachorros comam frutas de sobremesa e comidas melhores que a dos funcionários”, diz Paulo Carreiro, dono do lugar. Para vigiar os funcionários, há sete câmeras na casa: os donos podem acompanhar os bichos de casa, pela internet. Por que ter um cachorro, se ele passa o dia na creche ou com um passeador? Carreiro não tem resposta.

Mas a resposta para a existência disseminada desse tipo de função servil, de cunho nitidamente classista, “é a lógica da senzala que predomina no Brasil”, afirma o sociólogo Jacob Carlos Lima, pesquisador da UFSCar. “O trabalho braçal e doméstico é visto como coisa de pobre. E isso se reproduz na estrutura social.” Daí as políticas públicas, como as de transporte coletivo, por exemplo, serem secundárias – por terem nítida relação de classe. “Basta ouvir as reclamações de os aeroportos parecerem uma rodoviária. São valores da cultura brasileira, na qual a desigualdade é a norma.”

Aliada à cultura de servilismo vem a inexistência de uma infraestrutura pública de serviços para o cuidado de crianças e idosos (e, parece, cães), que faz com que a entrada no mercado das classes média e alta seja acompanhada de estratégias privadas, entre elas a contratação de mensalista e babá – e, por que não, a transferência do ônus de estacionar um carro ao manobrista. “Motoristas, seguranças, babás vinculam-se aos empregos que permitem à família manter um séquito de trabalhadores domésticos”, frisa Lima. O caso dos seguranças é tácito. “É necessário criar muros simbólicos para afastar as classes perigosas. Condomínios, cercas elétricas, seguranças de preto, tudo mostra a sensação de insegurança generalizada da classe média, ao passo que explicita sua sensibilidade social próxima a zero.”

Para manter esse comportamento classista, é necessária uma desigualdade brutal. E o Brasil é um dos líderes nesse quesito – o quarto da América Latina, atrás até do pobre Paraguai. A remuneração média no Brasil é de três salários mínimos, uma das mais baixas do mundo. Mas não é só a precariedade que incomoda. Um grau arcaico de servilismo, encoberto pela melhora na vida material, desponta na relação de patrões endinheirados (e nem tanto) com seus serviçais. Por que há um exército de manobristas, diaristas, babás e outros serviçais para bajular a elite? “Porque o trabalho é mal pago”, resume a economista Hildete. “Num país com melhor distribuição de renda, essas pessoas teriam funções mais produtivas.”

De 1979 a 2009, o emprego com carteira assinada entre trabalhadores domésticos cresceu, em média, 0,8% ao ano. “Se seguir esse ritmo, o Brasil levará 120 anos para incluir todos na proteção social e trabalhista”, afirma o economista Marcio Pochmann, ex-presidente do Ipea. Como a dinâmica das relações de trabalho dentro das residências é distinta da existente nas empresas, as tentativas de formalização falham, diz. Seria, por exemplo, impossível fiscalizar o cumprimento da jornada ou o pagamento de horas extras. Por isso, Pochmann propõe o fim dos contratos diretos entre as famílias e os funcionários. O ideal seria a constituição de cooperativas ou prestadoras de serviço. “É o que ocorre nos Estados Unidos e na Europa.” O problema é o custo. Com a terceirização, haveria alta de 60% no custo – e 20,8% das vagas (1,9 milhão) com remuneração de até meio salário mínimo mensal deixariam de existir. Com o crescimento da economia, porém, novos postos de trabalho surgiriam. Mesmo ganhando menos, esses trabalhadores optariam por qualquer outra ocupação, “com direitos trabalhistas assegurados e longe da lógica serviçal”.

Nesse cenário, a média dos empregados domésticos envelhece. Se antes a maioria tinha até 24 anos (60,5% em 1970), agora esses profissionais estão concentrados na faixa dos 25 a 44 anos (55,8%), segundo dados do IBGE. “Isso mostra que as jovens podem estar se escolarizando para não entrar nessa profissão”, afirma Natália Fontoura, do Ipea. Concorda o autor do livro A Política do Precariado, o sociólogo Ruy Braga, professor da USP. Ao entrevistar centenas de operadoras de telemarketing, ele concluiu que boa parte delas era de filhas de domésticas e, mesmo ganhando menos, optava pelos call centers para fugir do estigma. “Para não seguir os passos das mães, elas aceitam ganhar menos, mas ter acesso a direitos trabalhistas e uma jornada de trabalho menor, que lhes permitem fazer uma faculdade noturna”, diz Braga.

Hoje, há menos empregadas por domicílio interessado do que nunca no País. Segundo o Ipea, só na Grande São Paulo, nos últimos quatro anos, o número de empregados subiu 11%: já o de domésticas caiu 4%, enquanto seus salários cresceram 21%. Um fenômeno que a Inglaterra começou a viver na virada do século XIX, nos tempos de Virginia Woolf, mas que já se consolidou há décadas. Um abismo transoceânico capturado pelo artista André Penteado.

Nascido em São Paulo em uma família de classe média alta, Penteado cresceu entre duas empregadas em uma fazenda em Ilhéus, na Bahia. De volta a São Paulo, tinha só uma. Adulto, dependeu de diaristas. Até se mudar para Londres, onde a faxineira cobra por hora. “Em países desenvolvidos, ter uma empregada mensalista é privilégio de ricos”, diz. “Há na classe média inglesa uma autossuficiência maior e a aceitação de que alguns confortos não são necessários.” Do choque nasceu a obra, uma série de fotos das domésticas brasileiras posando em seus ambientes de trabalho. “Este é o retrato de um igual, de um ser humano”, diz. “Nós, a elite deste país, temos de aprender a ver e respeitar os outros como iguais.” Um brasileiro que visse tais fotos, diz, diria na hora tratar-se de domésticas. “Isso não ocorreria com britânicos. Para eles, é parte normal da vida. Uma rotina de quem cresceu em uma casa em que os pais fazem tudo e que você tem de ajudar. É uma questão cultural.”

*Colaborou Amanda Lourenço, do Rio de Janeiro.

Blues do "hot money"

Por Paul Krugman em 26/03/2013
Professor de Princeton e colunista do New York Times desde 1999, Krugman venceu o prêmio Nobel de economia em 2008


Seja qual for o resultado da crise no Chipre - sabemos que a coisa vai ser feia, só não sabemos que forma exatamente a coisa vai assumir -, uma coisa parece certa: no momento, e provavelmente durante os próximos anos, esse país-ilha terá que manter controles bastante draconianos sobre a circulação do capital que entra e sai de seu território.

Na verdade, é possível que esses controles já tenham sido postos em prática no momento em que você lê este artigo. E isso não é tudo: dependendo de como a situação se desenrolar, os controles cipriotas sobre a movimentação de capitais podem muito bem ter a bênção do FMI (Fundo Monetário Internacional), que já apoiou a adoção de tais controles na Islândia.

Essa é uma evolução bastante notável. Ela marcará o fim de uma era para o Chipre, que na realidade passou a última década se promovendo como um lugar no qual pessoas abastadas que desejavam evitar a cobrança de impostos ou qualquer tipo de escrutínio mais profundo sobre seus recursos podiam aplicar seu dinheiro com segurança sem que nenhuma pergunta fosse feita. Mas essa evolução também pode, pelo menos, marcar o começo do fim de algo muito maior: o fim de uma era durante a qual a movimentação irrestrita do capital era adotada como uma norma desejável em todo o mundo.

Mas nem sempre foi assim. Durante as primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial, as restrições sobre os fluxos de capitais que atravessavam as fronteiras nacionais eram amplamente tidas como boa política. Essas restrições eram mais ou menos universais nos países mais pobres e também estavam presentes na maioria dos países ricos. A Grã-Bretanha, por exemplo, até 1979 limitava os investimentos realizados por seus cidadãos no exterior. Outros países desenvolvidos mantiveram essas restrições durante a década de 1980. Mesmo os Estados Unidos restringiram, durante um breve período, as saídas de capital durante os anos 1960.

Com o passar do tempo, no entanto, essas restrições saíram de moda. Em certa medida, isso foi reflexo do fato de o controle de capital apresentar custos potenciais: ele impõe cargas extras de burocracia e torna as transações comerciais mais difíceis - além de as análises econômicas convencionais afirmarem que o controle provavelmente tem um impacto negativo sobre o crescimento (embora esse efeito seja difícil de ser mensurado). Mas o abandono das restrições também reflete a ascensão da ideologia do mercado livre: a suposição de que, se os mercados financeiros desejam movimentar dinheiro através das fronteiras dos países, deve haver uma boa razão para isso - e os burocratas não deveriam tentar impedir essa circulação.

Como resultado, os países que adotaram medidas para restringir os fluxos de capital - como a Malásia, que impôs o que equivalia a um toque de recolher para a fuga de capitais em 1998 - foram tratados quase como párias. Eles certamente seriam punidos por desafiar os deuses do mercado!

Mas a verdade, por mais dificuldade que os ideólogos tenham em aceitá-la, é que a movimentação irrestrita de capitais está se parecendo cada vez mais com uma experiência fracassada.

É difícil imaginar isso hoje em dia, mas durante mais de três décadas após a Segunda Guerra Mundial crises financeiras como aquelas às quais estamos nos familiarizando ultimamente quase nunca aconteciam. Desde 1980, no entanto, a lista tem sido impressionante: México, Brasil, Argentina e Chile em 1982. Suécia e Finlândia em 1991. México novamente em 1995. Tailândia, Malásia, Indonésia e Coreia em 1998. Argentina de novo em 2002. E, claro, a mais recente série de desastres: Islândia, Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha, Itália, Chipre.

Qual é a característica comum detectada em todos esses episódios? A sabedoria convencional culpa prodigalidade fiscal – mas, de toda essa lista, a história da prodigalidade fiscal só se encaixa em um país: a Grécia. Os banqueiros fugitivos compõem uma história muito melhor. Eles desempenharam um papel em várias dessas crises, do Chile até a Suécia e o Chipre. Mas o melhor profeta das crises são as grandes entradas de capital estrangeiro: em quase todos os casos que acabei de mencionar - com exceção de alguns poucos -, o fundamento da crise foi uma corrida de investidores estrangeiros para o mercado de um determinado país, seguida por uma repentina fuga de capitais desse mesmo mercado.

É claro que eu não sou a primeira pessoa a perceber a correlação entre a libertação do capital global e a proliferação das crises financeiras. Dani Rodrik, de Harvard, começou a soar o alarme na década de 1990. Até recentemente, no entanto, era possível argumentar que o problema das crises estava restrito aos países mais pobres, que as economias mais ricas estavam, de alguma forma, imunes de serem atacadas e, em seguida, abandonadas pelos investidores globais. Esse era um pensamento reconfortante - mas as agruras vividas pela Europa demonstram que esse pensamento era uma ilusão.

E não foi apenas a Europa. Na última década, os Estados Unidos também experimentaram uma bolha enorme no setor imobiliário, alimentada por recursos estrangeiros e seguida por uma desagradável ressaca após o estouro da bolha. Os danos foram atenuados devido ao fato de nós termos tomado empréstimos em nossa própria moeda - mas ainda hoje estamos vivendo nossa pior crise desde os anos 1930.

E agora? Eu não espero que ocorra uma rejeição súbita e generalizada à ideia de que o dinheiro deve ser livre para ir aonde quiser, sempre que quiser. No entanto, pode muito bem estar ocorrendo um processo de erosão, à medida que os governos intervêm para limitar ritmo com que o dinheiro entra e a taxa com que ele sai. O capitalismo global está, sem dúvida, prestes a se tornar substancialmente menos global.

E isso é OK. Os velhos e duros tempos, quando não era tão fácil movimentar grandes quantias de dinheiro através das fronteiras nacionais, estão parecendo muito bons.
Tradutor: Cláudia Gonçalves